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#001 [ Cadós Sanchez & Inés Terra ][Marina Cyrino]

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Olá. Bem-vindxs à newsletter da Seminal Records.  Seminal Records é um selo brasileiro de música experimental e organizador de eventos. Estamos ativos desde 2013 e temos membros no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte.

Nossas newsletters conterão entrevistas, resenhas, ensaios críticos e artigos relacionados (ou não) à música experimental brasileira, assim como anúncios das atividades de nosso selo. Todas as newsletters estarão permanentemente disponíveis em blog.seminalrecords.org.

Nesta primeira edição anunciamos nosso mais novo lançamento Ferrugem com improvisações da dupla Cadós Sanchez & Inés Terra, máquina de som e voz. Também publicamos um texto de Marina Cyrino onde ela desdobra sua crítica à tradição pastoral da flauta ocidental assim como suas propostas sonoras em nosso lançamento anterior ofíciorifício :: transmogrificações do corpo caniço ::


Novo lançamento: Cadós Sanchez & Inés Terra – Ferrugem [Seminal Records, SR075, 04 de setembro de 2020] Dissipações e encontros entre máquina sonora (Liga do Tempo II) e voz humana.

Cadós Sanchez pesquisa luteria experimental e as possibilidades de utilização sonora de motores e engrenagens em instalações, objetos sonoros e performances. Inés Terra investiga as possibilidades da voz em diferentes contextos e linguagens, por meio da exploração vocal. O duo se encontra onde a insistência dos motores, assim como o processo de ferrugem, alimenta a busca de estratégias vocais que dissipam o que se espera dos corpos.

Inés Terra (foto: Caetano Tola)

Sobre Ferrugem, o duo escreve: “a amplificação de engrenagens e vozes evidencia o movimento repetitivo e falho, atritos inevitáveis e mudanças graduais. As vozes das máquinas se fundem com sonoridades vocais, entre engrenagens, molas, lamelas, fonemas e vocemas. Se trata de uma fusão entre sistemas, baseada na persistência dos materiais, pulsados por eletricidade, por uma mecânica e uma respiração férrea. Nos motores há um desenvolvimento harmônico que é potencializado a partir da exploração vocal. Nas vozes há uma pulsão impermanente que é decomposta pela ferrugem dos metais.”

Cadós Sanchez (foto: Pérola Mathias)

Marina Cyrino – ofíciorifício :: transmogrificações do corpo-caniço:: [Seminal Records, SR074, 27 de julho de 2020]


ofíciorifício—transmogrificações do corpo caniço: foi gravado durante a residência artística na Escola de Artes Visuais de Gerlesborg, Suécia, em fevereiro de 2019. É um registro sonoro do vocabulário experimental que venho desenvolvendo com a flauta transversal, utilizando amplificação, feedback e preparações. Microfones, amplificador, objetos, o corpo da flauta e o corpo da flautista entrelaçados em transformações polifônicas.

O conto:
Uma ninfa filha d’água — não sabemos o seu nome — sabemos o nome Syrinx dado a ela por Pã quando ele cortou o corpo da ninfa em pedaços de tamanhos variados para inventar seu instrumento, uma flauta de tubos feitos de caniço: a Flauta de Pã. Pã a cortou em pedaços depois da metamorfose da ninfa transformada em caniço por suas irmãs aquáticas quando a ninfa — ainda sem nome —implorou por ajuda para escapar do estupro de Pã.

Pã chamou o corpo-caniço fragmentado e reconstruído: Syrinx [= tubo]
Syrinx não é o seu nome, é o nome da voz de Pã ressoando dentro de um corpo fragmentado gênero feminino.
Syrinx, aos flautistas, a história é geralmente contada: “chora flauta, chora a perda da amada, Pã soprando sozinho em consolação.” Fauninho, tadinho…

Sem outra escolha, a não ser aceitar um substituto, Pã re-forma o corpo fragmentado da ninfa e a trans-forma na fonte da música que o conforta. Assim, Pã se torna ao mesmo tempo o criador da flauta e o poeta inaugural de Arcádia, imagem de uma voz poética com pretensões universalizantes.

A treta:
Como foi que a ninfa arcadiana transmogrificada se apegou à subjetividade do flautista moderno? Um empurrãozinho pode ter sido dado por um melodrama composto por Claude Debussy. A famosa peça para flauta solo Syrinx (1913), glamourizada na tradição da flauta ocidental, foi chamada originalmente de “A Flauta de Pã”. Composta por Debussy enquanto música incidental para o poema dramático Psyché, do poeta simbolista Gabriel Mourey, Syrinx se tornou um marco da tradição da flauta de concerto. Foi a primeira peça de sucesso para flauta solo desde a sonata em Lá menor composta por C.P.E. Bach exatamente 150 anos antes (1763). Foi também o primeiro hit solo composto para a flauta modelo Boehm, aperfeiçoada em 1847, e hoje estandardizada e distribuída ao redor do mundo enquanto “a” flauta transversal.

Debussy transbordava pastoral: ele compôs outro hit querido por todxs. O poema orquestral “Prelúdio à tarde de um Fauno”(1892-1894) amarrou a flauta aos traços eróticos e violentos de um pastoral que estava particularmente em voga na França no final do século 19, início do século 20. O universo pastoral evocado é de natureza eternamente renovável, e o prelúdio, com seu famoso solo para flauta, legitima a fantasia de plenitude expressa nos versos de Mallarmé: o Fauno-flautista e sua fantasia de um menáge à trois com duas ninfas gostosonas.

A tradição da flauta transversal moderna transborda pastoral. A subjetividade do flautista clássico ocidental passeia por Arcádia, pela fantasia de pastores sarados e ninfas sedutoras gozando plenamente em uma paisagem natural atemporal livre de perigos — e sem mosquitos. “A tarde de um Fauno”, junto com outras composições diversas da escola francesa do mesmo período, transformaram a imagem sonora da flauta transversal, que deixou de ser um pífaro, um apito, um passarinho, para se tornar um instrumento sinuoso, sensual.

Antes da sua tentativa de fuga e transformação, a ninfa respondeu Pã com um firme “- Não!”. Pã, em seu próprio futuro, depois de utilizar o corpo transformado da ninfa para confeccionar seu instrumento, usa os sons envolventes da sua flauta para encantar outras moças, para fazer-se desejado. E não é que o flautista é um arraso?!
“- Cala boca, escuta, contenha a tua alegria!” diz o guião da peça Psyché. Uma ninfa repreende outra ninfa, enquanto a voz melódica de Pã ressoa através da música de Debussy. Cenas de violência sexual são abundantes nestas re-ativações do pastoral, e lidas como “seduções”, transferindo a responsabilidade da transformação para a ninfa.

Ninfeta.
Ninfomaníaca.

Dana Bultman, em sua dissertação “The Music of Syrinx: The Voice in Pastoral”, seguiu a ninfa por séculos de tradição poética ocidental. Investigando que tipos de violências habitam os fundamentos da voz poética ocidental, ela explicita os laços que amarram um ato de violência fundante e o estabelecimento de uma voz poética que se impõe enquanto eixo cultural. Para Bultman, nenhum outro mito ocidental revela tão escancaradamente este laço violento quanto o mito de Syrinx e Pã. A partir das metamorfoses de Olvídio, ela traz à tona a violência da objetificação da ninfa no instrumento poético de Pã.
Em sua (frustrada) tentativa de fuga, a ninfa se torna a fonte da música de Pã, o instrumento da voz de Pã, e a fundação sobre a qual a tradição pastoral — ponto de partida para todo aspirante a poeta na tradição ocidental — foi construída.

A fuga e a transformação de Syrinx, resultando na sua reconstrução em forma de flauta, representa quão facilmente um corpo físico pode ser apropriado e convertido — através da voz poética — em material sonoro que não sustenta sua própria voz e desejo, mas serve a voz e o desejo de um outro.

A música de Syrinx se torna a música de Pã, e através da imitação de Pã, vozes e textos de outros poetas se agrupam e se fortalecem.

A voz poética universal desencarnada imposta sobre um corpo fragmentado feminino.

OfíciOrifíciO = improvisos, experimentações e dicas sonoras de:

+ Como interromper uma tradição que se baseia na fragmentação violenta de um corpo feminino, enquanto mito fundante, e que elegeu Pã, enquanto figura para guiar os caminhos de como som, poética e desejo são combinados.
+ Como recusar uma tradição de um registro melancólico de sabedoria poética baseada no fracasso e na perda do objeto amado.
+ Como destronar o flautista de sua glória fálica-melancolódica.

A ninfa, para além da objetificação e da fragmentação, resiste.
Re-faz seu corpo soa o corpo-caniço enraizando o corpo-fibroso água e lama adentro: af@gamentos
– ENTUPIU? NÃO QUEBRE!

Marina Cyrino (foto: Preto Matheus)

marina cyrino (brasil) :: experimentação sonora imagética (± concreta) flutter aeroelástico [[anarcovômitonoise]] ≈ ba.ba.rulhos < … entre balões, tubos, receptáculos de ar, etc > af@gamentos. Doutora em performance musical pela Universidade de Gotemburgo, reside em Berlim.
https://marinacyrino.art.br/


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Hello!
Welcome to Seminal Records’ newsletter. Seminal Records is a Brazilian experimental music label and event organizer. We are active since 2013 and are based in Rio De Janeiro and Belo Horizonte.

Our newsletters will contain interviews, reviews, critical essays and articles related (or not) to Brazilian experimental music as well as announcements of our label’s activities. All the newsletters will be permanently available on blog.seminalrecords.org.

In this first edition we announce our most recent release Ferrugem with improvisations of the duo Cadós Sanchez & Inés Terra, sound machine and voice. We also publish a text by Marina Cyrino where she unfolds her critique of the pastoral western flute tradition together with her sounding propositions in Seminal Record’s previous release ofíciorifício :: transmogrifications of the body-reed ::


New release: Cadós Sanchez & Inés Terra – Ferrugem (rust) [Seminal Records, SR075, September 04 2020]
Dissipations and encounters between instrument-machine (Liga do Tempo II) and human voice.


About Ferrugem (rust), the duo has written: “the amplification of gears and voices shows repetitive and faulty movement, inevitable friction and gradual change. The voices of the machines merge with vocal sounds, amidst gears, springs, phonemes and vocemas. It is a fusion between systems, based on the persistence of the materials, pulsed by electricity, mechanics and breathing. In the engines there is an harmonic development that is enhanced by vocal exploration. In the voices there is an impermanent drive that is decomposed by the rust of the metals.”

Inés Terra (foto: Caetano Tola)

Cadós Sanchez has been researching experimental luthiery and the sonic possibilities of engines and gears in art installations, musical instrument building and performances. Inés Terra investigates the possibilities of voice in different creative contexts and languages, through vocal exploration. The duo clicks when the insistence of the engines, as well as the rust process, feeds the search for vocal strategies that dissipate what is expected from our bodies.

Cadós Sanchez (foto: Pérola Mathias)

Marina Cyrino – ofíciorifício :: transmogrifications of the body-reed :: [Seminal Records, SR074, July 27 2020]


ofíciorifício—transmogrifications of the body-reed: was recorded during the art residency at the School of Visual Arts of Gerlesborg, Sweden, in February 2019. It is a sound record of the experimental vocabulary that I have been developing with the flute, using amplification, feedback and preparations. Microphones, amplifier, objects, the body of the flute and the body of the flutist intertwined in polyphonic transformations.

The tale:
A water nymph — we don’t know her name — we know the name Syrinx given to her by Pan when he cut her body into pieces of varying sizes to invent his instrument, a flute made of pipes made of reed: Pan’s Flute. Pan cut the nymph into pieces after her transformation into reed by her water sisters when the nymph — still unnamed — begged for help in order to escape being raped by Pan.

Pan called the fragmented and
reconstructed reed-body: Syrinx [= tube]
Syrinx is not her name: it is the name of Pan’s voice resonating in a fragmented body gendered female.
Syrinx, to the flutists, the story is usually told: “Weeping flute, resonating the loss of the beloved one. Pan, blowing in consolation.” Pan, poor one. All by himself.

With no choice but to accept a substitute, he reshapes the fragmented body of the nymph and transforms it into the source of the music that comforts him. Pan becomes at the same time the creator of the flute and the inaugural Arcadian poet, an image of a poetic voice with universalizing pretensions.

The argument:
How did the Arcadian transmogrified nymph became attached to the subjectivity of the modern flutist? A kick start might have been the melodrama composed by Claude Debussy. The famous piece for solo flute Syrinx (1913), glamorized in the tradition of the Western flute, was originally called “Pan’s flute”. Composed by Debussy as incidental music for the dramatic poem Psyché, by the symbolist poet Gabriel Mourey, Syrinx became a landmark for the concert flute tradition. It was the first famous piece for solo flute since the “Sonata in A minor” composed by C.P.E. Bach exactly 150 years before (1763). It was also the first solo hit composed for the Boehm-system model, perfected in 1847, which is today standardized and distributed around the world as “the” transversal flute.


Debussy was full of pastoral mode: he composed another flute hit loved by all. The prelude to “The Afternoon of a Faun” (1892-1894) tied the concert flute to the erotic and violent features of a pastoral that was particularly in vogue in France at the end of the 19th century, beginning of the 20th century. The pastoral universe evoked is of an eternally renewable nature, and the prelude, with its famous flute solo, resounds the fantasy of fullness expressed in Mallarmé’s texts: the Faun-flutist and his fantasy of a menáge à trois with two hot nymphs.

The tradition of the concert flute is full of pastoral mode. The subjectivity of the classical Western flutist strolls through “Arcadia”, through the fantasy of sporty shepherds and seductive nymphs indulging in a timeless natural landscape free of dangers, and with no mosquitoes. “The Afternoon of a Faun”, along with many other pastoral-evocative compositions from the same period, transformed the sound-image of the transverse flute, which went from being a fife, a whistle, a bird, transformed into a sinuous, sensual instrument.

Before her escape attempt and transformation, the nymph said to Pan a firm “No!”. In his own future, after using the transformed nymph´s body to craft his instrument, Pan uses the sweet sounds of his flute to charm other ladies, to make them desire him. And he sounds like a match!
“- Shut up, listen, restrain your joy!” says the script from Psyché. A nymph scolds another nymph, while Pan’s melodic voice resonates through Debussy’s music. Scenes of sexual violence are abundant in pastoral re-activations during the centuries, and are read as “seductions”, transferring the responsibility for the transformation to the nymph.

Nymphet.
Nymphomaniac.

Dana Bultman, in her work “The Music of Syrinx: The voice in Pastoral”, followed the nymph through centuries of Western poetic tradition. Investigating the types of violence that inhabit the foundations of the Western poetic voice, she seeks the bonds which tie an act of founding violence and the establishment of a poetic voice that imposes itself as a cultural axis. For Bultman, no other Western myth reveals this violent bond as wide-open as Syrinx and Pan. Departing from Ovid’s metamorphoses, she brings out the violence of the objectification of the nymph in the poetic instrument of Pan.
In her (failed) escape attempt, the nymph becomes the source of Pan’s music, the instrument of Pan’s voice, and the foundation on which the pastoral tradition — the starting point for every aspiring poet in the Western tradition — was built.


The escape and transformation the nymph into Syrinx, resulting in her re-construction in the form of a flute, represents how easily a physical body can be appropriated and converted — through a poetic voice — into sound material that does not support her own voice and will, but serves the voice and the will of another.

Syrinx‘s music becomes the music of Pan, and through the imitation of Pan, voices and texts from other poets came together and gained strength.

The disembodied universal poetic voice imposed on a fragmented female body.

ofíciorifício = improvisations—experimentations—sound hints on:

+How to disrupt a tradition that is based on the violent fragmentation of a female body, as a founding myth, and which elected Pan, as a figure to guide the paths of how music, poetics and desire are combined.
+How to refuse a tradition of a melancholic register of poetic wisdom based on failure and on the loss of the loved object.
+How to dethrone the flutist from his phallic-melancholodic glory.

The nymph, beyond her objectification and fragmentation, resists.
She re-makes her body, she sounds the reed-body, she roots the fibrous-body into water and mud:
-IF CLOGGED, DO NOT BREAK!

Marina Cyrino (foto: Preto Matheus)

marina cyrino (brazil) :: sound]imagetic[experimentations (± concret) ≈ aeroelastic flutter [[anarchovomitnoise]] dribbling < … in-between balloons, tubes, air receptacles, and so on. Currently based in Berlin, she holds a PhD degree in musical performance and interpretation by the University of Gothenburg. https://marinacyrino.art.br/